O Hinduísmo e o surgimento da prática meditativa

A primeira menção textual sobre a Meditação pode ser encontrada em uma escritura hindu datada do séc. VII a.C., que buscava refletir sobre a natureza da consciência humana. Este texto é o Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad e ele é um marco na literatura filosófico-religiosa indiana, pois inicia um questionamento sobre a existência humana diferente dos textos ainda mais antigos do Oriente, os Vedas, que já versavam reflexivamente sobre a existência e a natureza, mas ainda estavam muito focados nos rituais da religiosidade indiana antiga.

Os Upaniṣads surgem dentro do Hinduísmo com um foco maior nesta descoberta da natureza do Eu (Si-mesmo) ou, como dizia-se, da “verdade interior” (Flood, 2013). Reverberações desta visão mais profunda sobre a consciência humana irão influenciar nos milênios seguintes a filosofia budista Theravada, Tibetana e o Zen, e até as ciências da saúde a partir da elaboração do primeiro protocolo de Mindfulness de Jon Kabat-Zinn em 1979 na Universidade de Massachusetts.

Esta era de transição religiosa, conhecida como “Era Axial”,  coincidiu temporalmente em diferentes civilizações do mundo (Grécia, Índia e China) teve como uma de suas principais características o início do pensamento crítico e da reflexividade, culminando no desenvolvimento de uma “cultura teórica” (Donald, 1991), definida pela capacidade humana de examinarmos nossas próprias hipóteses e premissas sobre a vida, e, em suma, partindo para um “questionamento de toda a atividade humana e conferindo-a um novo significado” nas palavras de Karl Jaspers (1953, p. 1).

Neste período podemos encontrar o primeiro desenvolvimento sistemático da Meditação, como também das formulações clássicas de conceitos-chave e valores das religiões indianas, como a noção da “verdade interior”, entre outras. Como podemos ver neste trecho do Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad, que discorre pioneiramente sobre a percepção do Eu ou do Si-mesmo, nos sânscrito ātman, como um centro observador da vida:

“Um ser humano que saiba disto, portanto,
torna-se calmo, sereno, tranquilo, paciente e recolhido.
Ele vê o Si-mesmo (ātman) em apenas Si-mesmo
e todas as coisas como o Si-mesmo.”
(OLIVELLE, 1998, p. 127, tradução nossa).

Em outro antigo livro desta tradição o Katha Upaniṣad, vemos um aprofundamento disso, em uma descrição simbólica do Si-mesmo, muito semelhante a alegoria da carruagem que vemos no ocidente na obra Fedro de Platão:

“Compreenda o si mesmo
enquanto um passageiro em uma carruagem,
e o corpo, simplesmente enquanto a carruagem,
compreenda o intelecto (buddhi) enquanto o cocheiro,
e a mente (manas), simplesmente enquanto as rédeas.
Os sentidos, eles dizem, são os cavalos,
e os objetos dos sentidos são os caminhos em torno deles.”
(OLIVELLE, 2008, p. 239, tradução nossa)

Aqui vemos então uma busca por uma compreensão do que é ser humano essencialmente, mas devemos destacar também como estes textos estão em última instância buscando compreender mais sobre o sofrimento inerente da vida humana e como podemos lidar ou transcender este sofrimento. Nestas obras de caráter mais profundo, discorre-se mais sobre como alcançar mais foco (dharana), como permanecer em um estado contemplativo (Dhyāna) e como descobrir uma paz interior duradoura (Samādhi).

Na visão destes sábios antigos, o caminho mais prático e objetivo para alcançar esta paz de espírito é a Meditação, através de técnicas para acalmar corpo e mente, que usam ferramentas como a manipulação e observação de nossa própria respiração, a percepção das sensações corporais, além da consciência do fluxo de pensamentos e emoções.

Assim, o Hinduísmo antigo é um berço de muitas reflexões que irão influenciar as técnicas de Meditação, que depois culminam no Budismo e mesmo no Mindfulness moderno. Este é um tema vasto e complexo, e continuaremos essa conversa nos posts futuros aqui no Blog EntreSer.

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Um abraço, Marcus

* Referências:
Donald, M. (1991). Origins of the modern mind: Three stages in the evolution of culture and cognition. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Flood, G. (2004). The ascetic self: Subjectivity, memory and tradition. Cambridge: Cambridge University Press.
Gomes, Marcus V. F. (2021) UM DIÁLOGO ENTRE AS FILOSOFIAS INDIANA E GREGA: A analogia da carruagem da alma no Katha Upaniṣad e no Phaedrus de Platão. Apresentação em Tradições Religiosas do Hinduísmo (UFJF).
Jaspers, K. (1953). The origin and goal of history. London: Routledge & Kegan Paul. (Original work published 1949).
Olivelle, P. (Ed. & Trans.) (1998). The early Upaniṣads: Annotated text and translation. New York: Oxford University Press.
Wernicke-Olesen, Bjarne. Hinduism and Meditation: Yoga. The Oxford Handbook of MEDITATION. (2021) New York: Oxford University Press.

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Marcus e Débora

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