Tolstói e a Índia

Um paralelo entre a doutrina indiana dos Puruṣārthas e a obra “A morte de Ivan Ilitch” de Lev Tolstói

Neste artigo buscaremos explorar as possibilidades de diálogo entre a doutrina indiana dos puruṣārthas, as quatro aspirações humanas (Artha, Kāma, Dharma e Mokṣa), e a obra “A morte de Yvan Ilitch” de Lev Tostói.

“Um romance de Tolstói não é uma obra de arte, mas um pedaço da vida.”
~ Matthew Arnold, Poeta Britânico (1822 – 1888)

Partimos da hipótese de que esses quatro conceitos podem nos servir como uma chave de leitura para interpretarmos o percurso de vida do personagem Yvan Ilitch com uma visão inspirada pelo pensamento clássico hindu. Desta forma, nosso intuito aqui é descobrir se tal diálogo pode ser frutífero para expandirmos nossa compreensão sobre as reflexões desenhadas pelo autor através de um personagem que se encontra diante de sua morte, como também para ampliar nossa reflexão sobre esta temática indiana das aspirações humanas que se faz presente nesta obra de Lev Tolstói. [1]

Tendo superado os limites da Rússia, influenciando o pensamento europeu de sua época, não só no campo da literatura, mas também na área da filosofia e, mais tarde na psiquiatria e psicologia, as obras de Tolstói possuem um caráter radical. O autor russo se tornou, ainda vivo, uma influência literária mundial, como vemos no interesse da Índia em sua vida e seus escritos. Dentro dos estudos da literatura indiana moderna sabe-se que Tolstói foi um dos autores ocidentais que mais a influenciaram entre os séculos XIX e XX, tendo se tornado uma leitura popular na Índia através de traduções inglesas e mesmo em diversas línguas indianas, além de aparecer recorrentemente em matérias nos grandes jornais e periódicos hindus daquele período.


Foto de Estúdio rara de Mahatma Gandhi, tirada em Londres a pedido do Lorde Irwin em 1931

Sua grande recepção na Índia colonial o levou a ter contato direto com Mahatma Gandhi, através de cartas trocadas em torno de 1910, tendo sido uma das principais fontes de inspiração ocidental para a filosofia de não-violência do ativista indiano. Sobre um dos livros de Ganghi, Hind Swaraj (Autogoverno da Índia), Tolstói lhe escreveu, dizendo: “Eu li o seu livro com grande interesse, porque acredito que a questão que você trata nele – a resistência passiva – é uma questão de enorme importância não somente para a Índia, mas para a humanidade como um todo” (TOSLTÓI, 2008, p.102). Sabe-se que Gandhi também foi muito influenciado pelo ideal de simplicidade de vida de Tolstói e principalmente pelo livro “O reino de Deus está em vós”. Gandhi mais tarde iria inclusive nomear o seu primeiro Ashram de Tolstoy Farm. Dentre seus muitos admiradores indianos encontram-se também o célebre poeta Rabindranath Tagore e revolucionários e intelectuais como Taraknath Das, D. Javare Gowda e G. P. Pradhan.

Muito já foi escrito sobre essa relação entre Tolstói e a Índia, mas podemos destacar a pesquisadora Radha Balasubramanian, que além de especialista em literatura russa, possui origem indiana. Por sua profundidade nestas duas culturas, ela nos oferece uma visão única de ambas e suas possíveis pontes. A Professora Balasubramanian demonstra como o pensamento indiano influenciou o escritor russo desde a sua juventude, remontando a um incidente quando o jovem Tolstói, com 19 anos, conheceu um lama budista da Mongólia que descreveu como escapou de uma morte certa na mão de bandidos siberianos, ao rezar intensamente para que o Buddha perdoasse seus agressores.


Lev Tolstói em maio de 1908, quatro meses antes de seu aniversário de 80 anos (fotografado em Iasnaia Poliana por Sergei Mikhailovitch Prokudin-Gorski; a primeira foto colorida tirada oficialmente na Rússia)

A partir desse momento, em torno de 1840, Tolstói busca se aprofundar no espírito filosófico oriental, entrando em contato com conceitos como a não-violência, a compaixão, o vegetarianismo e a renúncia espiritual. Tolstói chegou a adaptar estórias indianas para o russo como na obra Azbuka, um abecedário infantil publicado em 1872, e mais tarde em sua vida, sabe-se que ele lia muitos autores indianos como Ramakrishna e Vivekananda. Em sua obra The Influence of India on Leo Tolstoy and Tolstoy’s Influence on India. A Study of Reciprocal Receptions, Balasubramanian defende que, apesar das referências diretas à filosofia indiana só pareçam surgir no final da vida do escritor, sua obra ficcional pode ser considerada como um “repositório para as ideias filosóficas hindus que construíram a sua própria identidade espiritual”. (BALASUBRAMANIAN, 2013, p. 8, tradução nossa).

Contudo, partindo de uma perspectiva de diálogo, nossa proposta aqui não será apontar as influências indianas diretas presentes em Tolstói, mas sim, desenhar um paralelo entre os conceitos dos puruṣārthas e a sua célebre obra “A morte de Yvan Ilitch”. Que este esforço possa ampliar nosso entendimento e nos fornecer mais luz para lermos Tolstói com este olhar ampliado.

 

 


I. “A morte de Ivan Ilitch” e o sentido da vida

Com “A morte de Ivan Ilitch”, Tolstói promove uma profunda reflexão sobre a morte e o sentido da vida, ao contar a estória de um autocentrado e oportunista juiz de meia idade, ocupado de tal modo com os seus afazeres mundanos que nunca havia considerado sua própria morte, até que uma doença o atinge visceralmente. Neste momento o personagem contempla o vazio de seus hábitos e se põe a perguntar existencialmente sobre toda a sua vida, como vemos no seguinte trecho:

“‘Alguma coisa não está certa; tenho que me acalmar, tenho que pensar em tudo desde o começo.’ E ele se pôs a pensar. ‘Sim, o início da doença. Dei uma batida de lado, mas não percebi grande mudança em mim, nem aquele dia, nem no seguinte; doeu um pouco, depois mais, depois os médicos, depois o humor tristonho, a angústia, de novo os médicos; e eu estava caminhando cada vez mais perto, mais perto do abismo. As forças diminuíam. Estava cada vez mais perto, mais perto. E eis que me consumi, não tenho mais luz nos olhos. E aí está a morte, e eu só penso no meu ceco. Penso em consertar o ceco, mas isto aqui é a morte. Será mesmo?’” (TOLSTÓI, 2009, p.47)


Confrontado com sua própria mortalidade, Ivan Ilitch se pergunta sobre essa sensação de que algo não estaria certo, sobre o significado de sua vida, se fez ou não as escolhas corretas e o que será dele em sua solidão. Como destaca o filósofo Merold Westphal, o livro retrata “a morte como um inimigo que nos leva a enganarmos a nós mesmos, nos rouba o sentido da vida e nos coloca em um confinamento solitário.” (WESTPHAL, 1984, p. 90., tradução nossa). Já o psicólogo Mark Freeman aponta para a amplitude deste romance de Tolstói:

“O livro de Tolstói é sobre muitas coisas: A tirania das amenidades burguesas, os terríveis pontos fracos do coração humano, a primazia e supressão da morte. Mas, mais do que qualquer outra coisa, eu diria, que é sobre as consequências de viver sem sentido, ou seja, sem uma conexão verdadeira e persistente com a nossa própria vida.” (FREEMAN, 1997, p.384, tradução nossa).

Enquanto tema principal, a morte permeia toda a narrativa da obra e de um ponto de vista biográfico, pode-se interpretar a “A morte de Ivan Ilitch” como uma manifestação do envolvimento de Lev Tolstói com a morte e o sentido de sua própria vida durante os seus últimos anos de vida. (PODGORSKI, 1997).


II. As quatro aspirações fundamentais da condição existencial

A doutrina pan-indiana dos puruṣārthas é uma das teorias básicas da filosofia clássica indiana, muito recorrente dentro de toda a tradição indiana, presente nos Upaniṣads, Brāhmanas, Dharmaśāstras e nos épicos Rāmāyana e Mahābhārata. Essencial para que possamos compreender a filosofia de vida indiana, ela apresenta uma tipologia das aspirações básicas da existência humana e, como descreve o Professor Dilip Loundo, “funda, numa perspectiva eminentemente fenomenológica, a genealogia e a ordenação orgânica das principias disciplinas cognitivas do subcontinente indiano.” (LOUNDO, 2019, p.22)

Levando em consideração a influência do pensamento hindu na obra de Tolstói e, por sua vez, a centralidade dos puruṣārthas dentro da filosofia indiana, um paralelo entre estes dois pode nos oferecer novas visões e reflexões. Nosso papel aqui não será adentrar o debate histórico ou exegético sobre os termos sânscritos, mas uma aproximação filosófica entre os sentidos clássicos dos puruṣārthas e os respectivos eventos e reflexões da vida do personagem Ivan Ilitch.

Dentro da pluralidade religiosa e filosófica que aflorou por todo o subcontinente indiano ao longo de sua história, os puruṣārthas se estabeleceram enquanto um esquema tradicional que propõe uma orientação para a vida humana, tendo se mantido no mesmo formato na sociedade hindu por mais de dois mil anos (DONIGER, 2006, p.150). Esta classificação daquilo que os seres humanos almejam também pode ser traduzida como “valores humanos a serem conscientemente buscados” (HIRIYANNA, 1952, p.22) e, mesmo etimologicamente, significa aquilo que o ser humano tem como objetivo ou meta alcançar. Essas quatro aspirações ou valores são:

  • Artha: a prosperidade/riqueza ou bem-estar no mundo, que busca satisfazer a tendência aquisitiva dos indivíduos;
  • Kāma: o prazer/desejo estético ou a satisfação erótica;
  • Dharma: a conduta correta ou adesão à lei, ao pacto social e à religião, em sânscrito significa literalmente “aquilo que mantém junto”;
  • Mokṣa: a busca pela libertação espiritual a ser alcançada ainda em vida.

O primeiro é um valor econômico e o segundo, um valor psicológico e hedonístico. Ambos são os valores seculares ou instrumentais da vida. Dharma, o valor moral, indica como a vida secular deve idealmente ser, ele regula e integra os outros valores. Já Mokṣa, é um valor espiritual, o objetivo destinal da vida humana. (GRIMES, 1996, p. 251). Desta forma, de acordo com o Professor Rajendra Prasad, Mokṣa é tido como como um valor puramente intrínseco da mais alta ordem. Kāma também tem esse caráter intrínseco, mas sem o status elevado de Mokṣa. Por outro lado, tem-se Artha como algo extrínseco somente e Dharma, por sua vez, intrínseco por alguns e extrínseco por outros. (PRASAD, 1981, p.52). E como destaca Dilip Loundo:

“ […] as duas últimas – dharma e mokṣa – são aquelas que constituem, propriamente, singularidades da condição humana. Seu corte qualitativo reside no fato de ambas se relacionarem com procedimentos que não se orientam na direção de objetos existentes à contemporaneidade da demanda.” (LOUNDO, 2019, p.24)

Temos consciência que a doutrina dos puruṣārthas foi uma formulação construída na sociedade clássica da Índia, que levava em consideração o ashrama, os quatro estágios da vida: Brahmacharya, o estudante; Grihastha, o chefe de família, Vanaprastha, “aquele que vai para a floresta” (período em que se passa as responsabilidades para a geração seguinte); e Sannyasa, o renunciante. Como afirma Prasad: “[…] considerava-se, desta forma, muitas suposições, dogmas, crenças e teorias, em voga naquele período, em relação à natureza do ser humano, suas aspirações e objetivos, e sua relação com a realidade, com o social, a natureza e o divino, tudo isso formava este pano de fundo.” (PRASAD, 1981, p.52, tradução nossa).

Ainda que formuladas na Índia antiga, os quatro puruṣārthas (Artha, Kāma, Dharma e Mokṣa) nomeiam quatro relevantes áreas da vida humana ainda nos tempos atuais. Tentaremos aqui usar a doutrina dos puruṣārthas como uma ferramenta para compreender mais profundamente as aspirações e valores do personagem Ivan Ilitch de Lev Tolstói.


III. Artha: a conquista do mundo material

Artha pode ser compreendido como a busca por todos os tipos de posse material, independentemente de sua potencialidade e seu uso correto ou errado, ou seja, qualquer coisa que alguém deseja possuir (upādeya), objetos materiais que incluem aqueles requeridos para a subsistência normal do ser humano (PRASAD, 1981, p. 51). Podemos dizer que Artha constitui a necessária conquista da estabilidade financeira através do trabalho/ação no mundo.

O romance de Tolstói inicia logo após a morte de Ivan Ilitch, quando parentes e colegas do falecido se reúnem em seu funeral. Para seus colegas a morte lhes parece algo distante. Eles parecem enxergar a morte da mesma forma que Ivan a via ao longo de sua vida: como um evento objetivo e não como uma experiência subjetiva existencial: “‘Aí está, morreu; e eu não’ — pensou ou sentiu cada um.” (TOLSTÓI, 2009, p.9). Agradecendo que eles mesmos não tinham morrido e, de imediato, passando a considerar como a morte de Ivan poderia ser uma vantagem em termos de dinheiro e posição:

“Além das considerações suscitadas em cada um por esta morte, sobre transferências e possíveis alterações no serviço, o próprio fato da morte de um conhecido tão próximo despertou como de costume, em cada um que teve dela conhecimento, um sentimento de alegria pelo fato de que morrera um outro e não ele.” (TOLSTÓI, 2009, p.9).

Vemos como a aspiração Artha se manifesta aqui através dessa “busca de objetos que satisfaçam nossa sede de poder e riqueza materiais”. (LOUNDO, 2019, p.24):

“[…] ao ouvirem a notícia da morte de Ivan Ilitch, o primeiro pensamento de cada um dos que estavam reunidos no gabinete teve por objeto a influência que essa morte poderia ter sobre as transferências ou promoções tanto dos próprios juízes como dos seus conhecidos.” (TOLSTÓI, 2009, p.8).

Seus colegas eram como ele em seu passado, um indivíduo que passou toda a vida desejando poder, status e riqueza. Podemos ver abaixo como ele identificava a sua insatisfação apenas como a falta de recursos para ter a vida que desejava:

“No verão daquele ano, para aliviar as despesas, ele pediu uma licença e foi com a mulher passar no verão no campo, em casa do irmão dela. No campo, sem as obrigações do serviço, Ivan Ilitch sentiu pela primeira vez não apenas tédio, mas uma angústia intolerável, e decidiu que não se podia viver assim, que era indispensável tomar algumas medidas decisivas. […] A viagem tinha o seguinte objetivo: pedir um cargo com ordenado de cinco mil. Agora, não fazia já questão de um ministério determinado, uma direção ou setor de atividade. Precisava simplesmente de um emprego, um emprego com ordenado de cinco mil, fosse numa administração qualquer, num banco, num escritório ferroviário, nas instituições da imperatriz Maria, mesmo na Alfândega, mas sem falta com cinco mil rublos e, sem falta, com abandono do seu cargo no ministério, onde não souberam apreciá-lo.” (TOLSTÓI, 2009, p.28).

Quando conseguia alcançar tais objetivos Ivan se ocupava intensamente dos arranjos desta nova fase da vida e “via com alegria que esses planos eram os seus planos” e que sua vida “adquiria um caráter autêntico, que lhe era peculiar, de alegria, encanto e decência”. (TOLSTÓI, 2009, p.29).

Desde o início do romance, que nos leva 30 anos anteriormente no tempo, vemos o esforço de Ivan para se tornar juiz e em seguida comprar uma casa na cidade, quando “encontrou um lindo apartamento, aquilo mesmo com que marido e mulher sonhavam.” (TOLSTÓI, 2009, p.30). Sua obsessão por alcançar um status social superior foi de certa forma satisfeito naquele momento ao decorá-la como se decoravam as casas da elite russa, mas, “na realidade, havia ali o mesmo que há em casa de todas as pessoas não muito ricas, mas que desejam parecê-lo e por isto apenas se parecem entre si.” (TOLSTÓI, 2009, p.31).


É importante ressaltar aqui que na visão hindu os puruṣārthas estão completamente entrelaçados, “no sentido de que todos eles juntos têm a pretensão de serem os objetivos desejáveis de uma personalidade bem equilibrada.” (PRASAD, 1981, p.53, tradução nossa). Cada puruṣārtha vivenciado de forma isolada torna-se em algum momento sem sentido. Vemos em Ivan Ilitch exatamente esta separação entre as quatro aspirações e sua angústia reflete a sua dificuldade em relacionar estes outros aspectos da vida em seu cotidiano.

Em uma trajetória profícua no mundo material, mas, contudo, vazia, Ivan rejubilava-se ao contar que “lhe fizeram festa em Petersburgo, como todos aqueles que tinham sido seus inimigos estavam humilhados e adulavam-no agora, como lhe invejavam a posição e sobretudo contou-lhe como todos gostavam dele na capital.” (TOLSTÓI, 2009, p.29).

Em seguida veremos como esse vazio logo passa a ser preenchido por Kāma, a satisfação dos prazeres: “Quando não havia mais nada a arrumar, tudo ficou um tanto cacete e sentiu-se falta de algo, mas então já se fizeram algumas relações, estabeleceram-se hábitos, e a vida se encheu.” (TOLSTÓI, 2009, p.32).


IV. Kāma : os prazeres da vida

“O ser humano consiste de desejo (kāma),
Tal como é o seu desejo, assim é sua determinação,
Tal como é a sua determinação, assim é o seu destino,
O que quer que seja o seu destino, ele o alcança.”
(Br̥hadāraṇyaka Upaniṣad, 2007, p. 173)[2]

O Br̥hadāraṇyaka Upaniṣad, um dos textos mais antigos do Hinduísmo, usa o termo Kāma em um sentido amplo para referir-se a qualquer tipo de desejo. Kāma, originário da raiz kām (desejar) significa literalmente desejo, prazer e amor erótico (GRIMES, 1996, p. 158). O conceito de Kāma pode ser encontrado em alguns dos versos mais antigos dos Vedas: “[…] ergue-se o Desejo no começo. Desejo, a semente primordial e o gérmen do Espírito (GRIFFITH, 1895, p. 575, tradução nossa).

Dentre os quatro puruṣārthas, Kāma refere-se à busca daquilo que satisfaça nossos instintos orgânico-sexuais e no contexto da filosofia de vida indiana clássica ele possui um valor essencial. O termo foi popularizado no ocidente pela obra Kāma-sūtra[3], um livro muitas vezes interpretado com um guia de posições sexuais, mas que, na verdade, trata-se de um tratado filosófico sobre as muitas facetas da vida amorosa e conjugal. (DONIGER, 2016, p. 20).

Para uma melhor compreensão, seria importante ressaltar que no contexto cultural da Índia antiga, sexo não possuía uma conotação pecaminosa como foi vulgarmente estabelecido em períodos da tradição judaico-cristã ocidental, mas sim como um dos aspectos essenciais da existência humana como ressalta o próprio autor do Kāma-sūtra, Vatsyayana: “Os prazeres são um meio de manter a vitalidade do corpo, da mesma forma que a comida” (VATSYAYANA, 2009, P. 70, tradução nossa). Vatsyayana afirma que kāma não deve estar nunca em conflito com os outros puruṣārthas:

“Um ser humano que pratica Dharma, Artha e Kāma usufrui de felicidade agora e no futuro. Qualquer ação que conduza à prática de Dharma, Artha e Kāma em conjunto […] deve ser praticada. Mas uma ação que conduz à uma prática de uma delas em detrimento das outras duas não deve ser realizada.” (VATSYAYANA, 2009, Cap. II, tradução nossa).

Vemos aqui como Kāma, apesar de estar mais relacionado ao amor erótico, ele não deve, contudo, se desviar do Dharma, ou seja, não pode se sobrepor ou transgredir a lei social ou a moral religiosa. O Professor Gavin Flood define Kāma como um amor que não viola a responsabilidade moral (Dharma) e a jornada em direção a libertação espiritual (Mokṣa). (FLOOD, 1996, p. 11-13).

Para o personagem Ivan Ilitch, Kāma, no sentido de amor conjugal, esteve sempre ligado a outras condições ou mesmo “cálculos”, como quando da decisão de casar-se: “Ivan Ilitch casou-se de acordo com os seus próprios cálculos: conseguindo tal esposa, fazia o que era do seu próprio agrado e, ao mesmo tempo, executava aquilo que as pessoas mais altamente colocadas consideravam correto.” (TOLSTÓI, 2009, p.23).

Sua escolha pelo casamento parecia levar em conta alguns aspectos relacionados ao Dharma, ao levar em consideração o que seria o correto fazer socialmente: “Ivan Ilitch não possuía uma intenção clara, determinada, de se casar, mas, quando a moça apaixonou-se, ele formulou para si mesmo a pergunta: ‘Por que, realmente, não casar?’.” (TOLSTÓI, 2009, p.23). Contudo, Tolstói destaca a complexidade psíquica do personagem: “Dizer que Ivan Ilitch casou-se porque se apaixonara pela noiva e encontrara nela compreensão para as suas concepções sobre a existência seria tão injusto como afirmar que se casou porque as pessoas das suas relações aprovaram aquele partido.” (TOLSTÓI, 2009, p.23).

Há também um aspecto muito interessante para a contextualização do termo Kāma, que também é conhecido por Kāmadeva no panteão hindu, a divindade da beleza e do amor, nascido da mente do Criador, Brahman (DONIGER, 1975, p. 131). Na mitologia indiana que se desenvolveu no período védico, entre o segundo milênio a.C. e o séc. VII d.C., ele personificava o desejo cósmico ou o impulso criativo que permitia que toda a criação fosse possível. Em períodos posteriores passou a ser retratado como belo jovem que disparava flechas para despertar o desejo sexual em outros Deuses. (DONIGER, 2006, p. 223).


Imagem hindu alusiva ao deus Kamadeva

Semelhantemente na mitologia grega antiga esse conceito foi personificado da figura do Deus Eros, também chamado de Cupīdō na tradição romana, com seu clássico arco e flechas que deixava os atingidos com um desejo incontrolável. Da raiz erasthai, Eros dentro do pensamento grego se refere ao amor passional, ao desejo intenso por algo[4].

Há de se destacar também na tradição grega o Eros platônico, tido como um desejo que busca a beleza transcendental:

“A implicação da teoria platônica de Eros é que a verdadeira beleza, que está refletida em particular nas imagens belas que encontramos, se torna intercambiável entre pessoas, coisas, ideias e arte: Amar é amar a forma platônica da beleza, não um indivíduo em particular, mas o elemento que eles possuem de beleza verdadeira ou ideal. A reciprocidade não é necessária na visão platônica do amor, pois o desejo é pelo objeto da Beleza, mais do que pela companhia de um outro ou por buscas e valores compartilhados.” (MOSELEY, 2021, tradução nossa)

Benjamim Moseley aponta como muito teóricos de Platão defendem Eros enquanto um valor intrinsecamente superior em comparação com o simples desejo físico/carnal:

“O desejo físico, eles apontam, é tido como em comum com o mundo animal. Desta forma, é de uma ordem inferior de estímulo e reação do que um amor induzido racionalmente, ou seja, um amor produzido pelo discurso racional e pela exploração das ideias, que por sua vez define a busca pela beleza ideal. Assim, o amor físico por um objeto, uma ideia ou pessoa, em si, não é uma forma apropriada de amor; o amor sendo um reflexo daquela parte do objeto, ideia ou pessoa que toma parte na Beleza Ideal” (MOSELEY, 2021, tradução nossa)


Jovem defendendo-se de Eros ~ Por William-Adolphe Bouguereau (1880)

Percebemos nesta obra de Tolstói, que seu personagem principal participa deste Eros Platônico no início de seu relacionamento, pois: “Prascóvia Fiódorovna Michel era a moça mais atraente, brilhante e inteligente do círculo de relações de Ivan Ilitch.” (TOLSTÓI, 2009, p.22). Mas Ivan Ilitch não deixava de manter uma certa preocupação com seu status e futuro financeiro também ao considerar a escolha por Prascóvia:

“[…] era de boa família nobre e nada feia; e havia ainda uma pecuniazinha. Ele podia contar com um partido mais brilhante, mas também este não era mau. Ivan Ilitch tinha o seu ordenado, e ela, segundo esperava o noivo, teria outro tanto. A parentela era boa, e ela, uma mulher simpática, bonitinha, direita.” (TOLSTÓI, 2009, p.23).

Contudo, após o convívio conjugal Ivan Ilitch compreendeu que o casamento nem sempre contribuía para o encanto e a decência da vida, mas, “pelo contrário, frequentemente os infringe, e que por isso era indispensável proteger-se contra essas infrações.” (TOLSTÓI, 2009, p.24). Ivan percebe neste ponto “a necessidade de cercar para si um mundo fora da família.” (TOLSTÓI, 2009, p.25). E passa a gostar mais do serviço, tornar-se mais ambicioso e, com seu foco em Artha, Ivan expele todas as emoções de sua vida, fazendo seu trabalho de forma objetiva e fria, “estabelecendo assim as barreiras em torno do seu mundo independente.” seu mundo independente

Em uma leitura mais ampla, o Professor Karl Potter descreve Kāma também como uma atitude ou capacidade. Uma criança sorridente, por exemplo, que abraça o seu ursinho de pelúcia estaria experienciando Kāma, da mesma forma que dois amantes abraçados. Nestas experiências, a pessoa se conecta e identifica o amado como uma parte de si mesma e se sente completa ao experimentar essa conexão. Isto, na perspectiva indiana é Kāma. (POTTER, 2002, pp. 1-29).

É neste sentido que, na medida em que “marido e mulher puseram-se a brigar cada vez com maior frequência, e logo desapareceu o leve e agradável, ficando apenas a decência” (TOLSTÓI, 2009, p.36), Ivan Ilitch passa a focar mais em seu jogo de cartas e outros pequenos prazeres da vida:

“Quanto aos prazeres de Ivan Ilitch, consistiam nos pequenos jantares, para os quais ele convidava senhoras e cavalheiros de elevada posição social, e essa maneira de passar o tempo com eles assemelhava-se à maneira habitual pela qual estes o passavam, de tal modo como a sua sala de visitas assemelhava-se a todas as salas de visitas.” (TOLSTÓI, 2009, p.34).

Eros no contexto ocidental remete à um mundo profano, distanciado da totalidade da vida, diferente da concepção de totalidade/Divindade presente no pensamento hindu. Para os indianos, tudo e todos se encontram dentro e partícipes da Divindade. Dizendo de forma simples, o hinduísmo em sua maior parte tem uma visão de caráter não-dual, de não separatividade, por isso, kāma, o eros indiano, é também uma parte da vida divina. Desta forma, entende-se o eu como parte inseparável da Divindade.

O Professor Dr. Dilip Loundo descreve o eu, ou ātman em sânscrito, como um conceito agregador do princípio de toda a experiência de subjetividade, que visa acentuar a dimensão da consciência e da imediaticidade. Já a Divindade, ou Brahman, é apontado como um conceito agregador do princípio de objetividade ou do mundo em sua totalidade, que visa inculcar a ideia de penetrancia absoluta (LOUNDO, 2017). Assim há dois pressupostos principais que norteiam os sentidos de toda a realidade e, por sua vez, do conceito de Kāma: O primeiro defende que Brahman é a verdadeira realidade e o mundo fenomênico e transiente é māyā, uma mera aparência plural e ilusória de Brahman. O segundo afirma que ātman, o verdadeiro eu, não é diferente de Brahman. Esta não diferenciação última entre ātman e Brahman é essencial para compreendermos por que kāma não só não é um empecilho para a realização espiritual última (mokṣa), mas sim, um dos fatores essenciais para que tenhamos uma vida plena em todas as dimensões.

Desta forma, para o pensamento indiano, é precisamente na integração de kāma, enquanto um dos aspectos intrínsecos à vida humana, que poderemos ter uma vida equilibrada.


V. Dharma: seguir a lei e os costumes

Nesta célebre obra de Tolstói vemos Ivan Ilitch como um chefe de família por excelência, que chamamos na tradição indiana de Grihastha, além de um disciplinador rigoroso para os filhos. Desta forma, veremos como Ivan busca a todo o tempo se adequar ao que ele considerava correto, de acordo com o senso comum de sua época:

“Na Faculdade, ele já era aquilo que seria no decorrer de toda a existência: um homem capaz, alegre, bonachão, comunicativo, mas um severo cumpridor daquilo que considerava seu dever; e considerava como seu dever tudo aquilo que consideravam como tal as pessoas mais altamente colocadas. Não era um adulador quer quando menino, quer já homem feito, mas, desde a idade mais tenra, era atraído, como o inseto pela luz, pelas pessoas altamente colocadas na sociedade, assimilava as suas maneiras, a sua visão da vida, e estabelecia relações amistosas com elas.” (TOLSTÓI, 2009, p.18).

Ivan Ilitch buscava, desta forma, seguir a Lei, os valores e o sistema de moralidade de sua época, que é um dos sentidos para a função do puruṣārtha Dharma na vida humana.

“In general usage ‘Dharma’ functions like an omnibus term denoting the essence of a thing, custom, ritual, legal system, religion, morality, etc., etc. But it also has a relatively narrower sense in which it denotes the set of obligations one is committed to fulfil in virtue of his passing through a particular period in his life-history, his natural and professional competence, and his status in society (varna’srama dharma) as well as those in virtue of his being simply a member of the human species (sâmânya dharma). (PRASAD, 1981, p.21)

O vida do personagem “correu da maneira pela qual, segundo a sua concepção, devia correr: leve, agradável e decentemente.” (TOLSTÓI, 2009, p.33). Ele buscava comportar-se “com dignidade quer com os superiores, quer com os inferiores, e, com exatidão e uma honestidade incorruptível”. (TOLSTÓI, 2009, p.19). Ainda que em alguns momentos os costumes destas pessoas altamente colocadas na sociedade, lhe levaram a agir de um modo questionável, ele se justificava:

“Cometeu na Faculdade algumas ações que, antes, pareciam-lhe grande ignomínia e que suscitaram nele asco por si mesmo, no momento em que as cometia; mas, percebendo ulteriormente que essas ações eram cometidas também pelas pessoas altamente colocadas e não eram consideradas por elas como ações más, não é que ele as tivesse considerado boas, mas esqueceu-as de todo e não se entristecia um pouco sequer ao lembrá-las.” (TOLSTÓI, 2009, p.19).

Desde o período da faculdade quando “entregou-se tanto a sensualidade como à vaidade” (TOLSTÓI, 2009, p.19), Ivan Ilitch apreciava seus momentos de ascensão social, como quando alcançou a posição de juiz e “sentia que todos, todos sem exceção, mesmo as pessoas mais importantes e convencidas, estavam nas suas mãos.” (TOLSTÓI, 2009, p.21). Ainda que não tenha abusado de sua autoridade, sentia que “a consciência dessa autoridade e a possibilidade de atenuá-la constituíam para ele o interesse principal e a atração do seu novo encargo.” (TOLSTÓI, 2009, p.21).

Com esse sentimento de seguir o seu Dharma, ou seja, seus deveres sociais, dedicava-se intensamente às suas funções e achava que as exercia fielmente: “voltava para casa cansado, mas com o sentimento do virtuose que executou primorosamente a sua parte, por exemplo a de um dos primeiros violinos numa orquestra.” (TOLSTÓI, 2009, p.33)

Sua vida conjugal, em certo momento, passa também a ter uma característica de dever (dharma), de apenas seguir o que a sociedade o pede e a fruição dos prazeres (kāma), ficando cada vez mais restrita a apenas alguns aspectos de seu cotidiano familiar: “Ele exigia da vida de família somente as comodidades do jantar, da dona de casa, do leito, comodidades essas que tal vida podia proporcionar-lhe, e sobretudo aquela decência das formalidades exteriores determinada pela opinião pública.” (TOLSTÓI, 2009, p.25). Isolando-se quando era preciso: “transferia-se imediatamente para o seu mundo isolado, que cercara de uma barreira, o mundo da sua vida funcional, e nele encontrava encanto” (TOLSTÓI, 2009, p.25), voltando o seu foco para Artha:

“Ivan Ilitch era apreciado como bom funcionário, e, passados três anos, tornou-se suplente de promotor. As novas obrigações, a importância destas, a possibilidade de processar e fazer encarcerar qualquer um, o caráter público dos seus discursos, o êxito que tinha, tudo isto atraía-o ainda mais para a sua vida funcional.” (TOLSÓI, 2009, p. 25)


Pintura de Frédéric Bazille

No entanto, na medida em que a ideia da morte lhe afligia e a doença lhe atingia visceralmente, sentia que seu trabalho já não preenchia sua vida como antes, quando “regressava para casa, com a triste consciência de que a sua função judiciária não podia mais, como outrora, esconder dele aquilo que ele queria esconder; que não podia livrar-se dela por meio da função judiciária.” (TOLSTÓI, 2009, p.51).

Com o seu adoecimento, Ivan Ilitch inicia questionamentos existenciais e, por mais que tentasse esconder de si mesmo seu próprio padecer, ele passou a se indagar sobre a sua conduta moral, sobre o sentido de suas ações e sobre o significado de sua vida e de sua morte, mas o fez em solidão, enquanto os outros seguiam o curso de suas vidas.

“A dor do lado não cessava de atormentá-lo, parecia cada vez mais forte, tornava-se permanente, o gosto na boca era cada vez mais esquisito, estava com a impressão de ter hálito asqueroso, e cada vez tinha menos apetite, menos forças. Não podia mentir a si mesmo: acontecia nele algo terrível, novo e muito significativo, o mais significativo que lhe acontecera na vida. E era o único a sabê-lo, todos os que o cercavam não compreendiam ou não queriam compreender isto, e pensavam que tudo no mundo estava como de costume. E isto atormentava Ivan Ilitch mais que tudo.” (TOLSTÓI, 2009, p.41).

Podemos pensar que tais questionamentos existenciais o levaram a adentrar o seu processo de reflexão filosófica sobre o seu próprio sofrimento, o que o levaria a busca por Mokṣa.


VI. Mokṣa: a libertação do próprio sofrimento

Andarilho sob um mar de Névoas ~ por Caspar David Friedrich – 1818

“Filosofar é aprender a morrer.”
~ Sócrates (470 a.C. – 399 a.C)

Antes do acometimento de sua doença, que por sua vez o levou a enfrentar pela primeira vez a ideia de que ia morrer, Ivan mal considerava tal assunto. Da mesma forma que, quando ao concluir seu curso de direito, pendurou em seu terno uma medalhinha com a inscrição respice finem[5] e isso não lhe interpelou significativamente, o assunto da vida e da morte era para ele também apenas algo desimportante, que se devia preocupar talvez algum momento no futuro.

Como vemos no pensamento de seus próprios colegas que não viam motivo para “se supor que aquele incidente pudesse impedi-los de passar agradavelmente aquela noite” (TOLSTÓI, 2009, p.11), ao combinar uma partida de baralho que aconteceria mais tarde na casa de Fiódor Vassílievitch, enquanto ele, Ivan, estava morto, deitado “de maneira particularmente pesada, afogado no forro do caixão” (TOLSTÓI, 2009, p.11). O temor e a angústia sobre a morte, contudo, parecia sim atingi-los, mas somente por um breve momento:

“‘Três dias de sofrimentos terríveis, depois a morte. Bem que isto pode acontecer comigo também, agora, a qualquer momento’ — pensou, e assustou-se por um instante. Mas imediatamente, ele mesmo não sabia como, acudiu em seu auxílio a ideia costumeira de que aquilo sucedera a Ivan Ilitch e não a ele, e que não devia nem podia acontecer-lhe; que, pensando aquilo, ele se entregava a um estado sombrio de ânimo, o que não devia fazer, como se constatava pelo rosto de Schwartz. E, tendo feito essa reflexão, Piotr Ivânovitch acalmou-se e pôs-se a interrogar com interesse a viúva sobre pormenores do passamento de Ivan Ilitch, como se a morte fosse uma aventura inerente a Ivan Ilitch apenas, e de modo nenhum a ele também.” (TOLSTÓI, 2009, p.15).

Para Ivan Ilitch, a angústia em relação à sua morte se dá de modo crescente ao longo do romance, iniciando-se já quando ele percebeu que seu adoecimento era encarado de forma trivial e técnica, semelhante à tecnicidade do seu próprio trabalho como juiz, quando visitou um médico famoso que lhe for indicado:

“Tudo se passou como esperava, isto é, como sempre acontece nessas ocasiões: a espera, um ar importante e artificial, doutoral, que já conhecia, aquele mesmo que ele sabia que tinha no tribunal, as batidas no paciente, a auscultação, as perguntas que exigiam respostas formuladas de antemão e, ao que parece, desnecessárias, a expressão significativa, que sugeria o seguinte: basta que você se submeta a nós, e havemos de arranjar tudo, sabemos sem nenhuma dúvida como arranjá-lo, temos um padrão único para todas as pessoas. Tudo era exatamente igual ao que sucedia no tribunal. Assim como ele assumia certa expressão para falar com os acusados, o médico famoso também assumia determinada expressão.” (TOLSTÓI, 2009, p.37).

O personagem sentia que seu adoecimento era algo trivial para seu médico como vemos no trecho: “Não se tratava da vida de Ivan Ilitch, o que existia era uma discussão entre o rim móvel e a afecção no ceco.” (TOLSTÓI, 2009, p.37). Enquanto para Ivan as doenças, a saúde humana e a angústia de não saber mais informações precisas sobre o seu adoecimento tornaram-se os principais interesses de sua vida.

Os outros personagens começam a perceber os efeitos de sua doença e, como ele passou a sentir mal-estar no trabalho ou mesmo estando com os colegas, Ivan sentia que sua vida estava envenenada e envenenava a vida dos demais, dizendo ainda que “este veneno não se enfraquece, mas penetra cada vez mais todo o seu ser.” (TOLSTÓI, 2009, p.43). No auge de seu padecimento, o interesse que ele apresentava para os demais parecia consistir unicamente nisso: “se não demoraria muito a desocupar finalmente o seu lugar, a livrar os vivos da opressão causada pela sua presença, e a livrar-se ele mesmo dos seus sofrimentos.” (TOLSTÓI, 2009, p.52).

Ainda que buscasse retornar a sua atenção de volta ao seu Dharma, seu trabalho no tribunal, a doença lhe lembrava no corpo que a morte estava próxima. Como quando um dia, trancado em seu quarto, depara-se com a sua própria imagem:

“[…] ficou olhando-se no espelho: de frente, depois de lado. Apanhou o seu retrato com a mulher e comparou-o com o que via no espelho. Era enorme a mudança. Depois, desnudou os braços até o cotovelo, olhou, desceu as mangas, sentou-se numa otomana e ficou mais negro que a noite. “Não se deve, não se deve” — disse de si para si, levantou-se num salto, acercou-se da mesa, abriu um processo, começou a lê-lo, mas não conseguiu.” (TOLSTÓI, 2009, p.44).

Ivan Ilitch passa então a deixar de se enganar e enfrentar o fato de que está morrendo, sente suas forças diminuindo, que estava se consumindo e não possuía mais luz nos olhos. (TOLSTÓI, 2009, p.47):

“Sim, a vida existiu, mas eis que está indo embora, embora, e eu não posso detê-la. Sim. Para quê me enganar? Não é evidente para todos, com exceção de mim, que estou morrendo, e a questão reside apenas no número de semanas, de dias, talvez seja agora mesmo? Existiu luz, e agora é a treva. Eu estive aqui, e agora vou para lá! Para onde?” Um frio percorreu-o, a respiração se deteve. Ele ouvia apenas as batidas do coração.” (TOLSTÓI, 2009, p.47).

Neste ponto, onde o desespero não o largava mais, o personagem “sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo” (TOLSTÓI, 2009, p.49). Ainda que tentasse repelir esse pensamento, ele sentia que “não só o pensamento, mas como que a própria realidade, voltava e estacava diante dele.” (TOLSTÓI, 2009, p.50). É precisamente neste momento de profunda reflexão sobre a sua morte, que Ivan Ilitch passa a filosofar sobre o sentido de sua vida e de seu passado, adentrando naturalmente o puruṣārtha Mokṣa, fazendo a si mesmo as grandes perguntas:

“Eu não existirei mais, o que existirá então? Não existirá nada. Onde estarei então, quando não existir mais? Será realmente a morte? Não, não quero.” Levantou-se de um salto, quis acender a vela, apalpou em volta, as mãos trêmulas, deixou cair no chão o castiçal com a vela e tornou a descair para trás, sobre o travesseiro. “Para quê? Tanto faz—disse a si mesmo, perscrutando a treva, os olhos abertos. — A morte. Sim, a morte. E nenhum deles sabe nem quer saber, e nem lamenta isso. Ocupam-se de música. (Ouvia, atrás da porta, distantes, o retumbar de uma voz, acompanhado de ritornelos.) Para eles, tanto faz, mas também eles hão de morrer. Bobalhões. Eu vou primeiro, eles depois; hão de passar pelo mesmo que eu. E, no entanto, estão alegres. Animais!” Sufocava de raiva. Teve uma sensação penosa, torturante, intolerável. Não podia ser verdade que todos estivessem condenados para sempre a este medo terrível.” (TOLSTÓI, 2009, p.47)

A reflexão sobre a finitude da vida é algo central na filosofia indiana, daí que Mokṣa pode ser considerado como o puruṣārtha mais elevado e, como defendem alguns especialistas, através do qual o próprio Dharma seria um meio. (PRASAD, 1981, p.52). Traduzido como liberdade, liberação, salvação ou mesmo soltar-se das amarras, o termo Mokṣa pode significar, em um sentido religioso hindu, a liberdade do ciclo de morte e nascimento, mas em um sentido mais filosófico aponta para a liberdade do próprio sofrimento, como também do apego aos objetos do desejo.

Há de se destacar que apesar de acontecerem em tempos distintos na vida de cada pessoa, no quadro de referência indiana os puruṣārthas geralmente indicam uma sequência cronológica, daí que se justifica “a necessidade de uma vivência plena da mundanidade (kāma e artha) e da religiosidade ritual e moral (dharma): tais vivências constituem requisito para o despertar e a persecução do empreendimento filosófico-soteriológico (mokṣa).” (LOUNDO, 2019, p.31).

Segundo Dilip Loundo, a pertinência do termo “filosofia” como tradução do cognato sânscrito mokṣa “não reflete as idiossincrasias do tradutor, mas as exigências do sentido histórico e etimológico” (LOUNDO, 2019, p.25) desta palavra no Ocidente. Ele defende que esta quarta e última aspiração:

“[…] tem na filosofia seu encaminhamento privilegiado enquanto dimensão de aprofundamento último da função religiosa. A reflexão que a constitui transcorre enquanto racionalidade crítica, apofática, eliminativa das clivagens e distinções que subsistem, na literalidade da narrativa mítico-religiosa que constitui o estágio inicial, entre a interioridade do princípio constitutivo da subjetividade (ātman) e a exterioridade do princípio constitutivo da objetividade (brahman), o Absoluto.” (LOUNDO, 2019, p.24)


Para Loundo é neste derradeiro estágio da vida que se dá o “adentramento no mistério […] que culmina com a realização do princípio de unicidade ou não-dualidade ontológica que congrega, aqui e agora e desde toda a eternidade, o sujeito e o Absoluto (ātman ⁓ ≠ brahman).” (LOUNDO, 2019, p.24). De um ponto de vista existencial, a função de mokṣa enquanto filosofia, ou “estágio último da religião, é o esclarecimento cognitivo último, por parte do sujeito, do caráter imanente do Absoluto.” (LOUNDO, 2019, p.24). Ainda segundo Loundo há uma sequencialidade hierárquica natural que se instaura entre os puruṣārthas dharma e mokṣa. Isto “decorre do fato de que o exercício da segunda depende de um esgotamento das expectativas objetificadas da primeira, que se cumpre com o abandono de todo e qualquer anseio por objetos, humanos ou divinos, materiais ou imaginais, presentes ou futuros.” (LOUNDO, 2019, p.24).

Ivan Ilitch vê esse esgotamento de suas expectativas e suas perguntas existenciais, que o permite questionar toda a sua vida. Ele se pergunta: “E o que será se realmente toda a minha vida, a minha vida consciente, tiver sido ‘outra coisa’?” (TOLSTÓI, 2009, p.72):

“Veio-lhe à mente: podia ser verdade aquilo que lhe parecera antes uma impossibilidade total, isto é, que tivesse vivido a sua existência de maneira diversa da devida. Veio-lhe à mente que as suas veleidades quase imperceptíveis de luta contra aquilo que as pessoas mais altamente colocadas consideravam correto, veleidades quase imperceptíveis que ele imediatamente repelia, podiam ser justamente as verdadeiras, e tudo o mais ser outra coisa. O seu trabalho, o arranjo da sua vida, a sua família, e esses interesses da sociedade e do serviço, tudo isto podia ser outra coisa. Tentou defender tudo isto perante si. E de repente sentiu toda a fraqueza daquilo que defendia. E não havia o que defender. […] E se isto é assim — disse ele consigo — e eu parto da vida com a consciência de que destruí tudo o que me foi dado, se não se pode mais corrigi-lo, que fazer então?” Deitou-se de costas e pôs-se a examinar toda a sua vida de maneira completamente diversa. Quando ele viu de manhã o criado, depois a mulher, em seguida a filha, o médico, cada um dos movimentos deles, cada uma das suas palavras confirmavam para ele a terrível verdade que se revelara naquela noite. Via neles a si mesmo, tudo aquilo de que vivera, e via claramente que tudo aquilo era não o que devia ser, mas um embuste horrível, descomunal, que ocultava tanto a vida como a morte. A consciência disso aumentou, decuplicou os seus sofrimentos físicos.” (TOLSTÓI, 2009, p.72)

Nesta reflexão que abarca os alcances de Artha, Kāma e Dharma em sua existência, Ivan Ilitch “percebe que sua vida não fora o que devia ser.” (TOLSTÓI, 2009, p.72). E ainda que suas dores físicas fossem terríveis, “os seus sofrimentos morais eram mais terríveis que os físicos, e nisso consistia a sua tortura maior.” (TOLSTÓI, 2009, p.71).

Contudo, sua libertação de todo esse sofrimento viria a partir do momento em que ele pareceu aceitar a sua própria morte e “percebeu com clareza que aquilo que o atormentara e não o deixava, estava de repente saindo de uma vez, de ambos os lados, de dez lados, de todos os lados” (TOLSTÓI, 2009, p.75)

Em última instância, o estágio de Mokṣa aponta para esse conhecimento discriminativo de que o eu é um com a totalidade das coisas e que todas as nossas preocupações e ocupações mundanas possuem um caráter ilusório (māya), por sua natureza impermanente. Dentro da concepção indiana, o despertar para esta realidade da consciência se dá através de práticas meditativas ou contemplativas, mas muitas vezes pode acontecer diante de algum acontecimento importante, como acidentes, experiências de quase morte ou, como na estória do próprio Ivan Ilitch, esse despertar surge no exato momento de sua morte:

“E a morte? Onde está? Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia. Em lugar da morte, havia luz. Tudo isso lhe aconteceu num instante, e a significação desse instante não se alterou mais.” (TOLSTÓI, 2009, p.76)


Conclusão

A importância de trabalhos que fazem pontes entre diferentes tradições torna-se cada vez mais necessário no mundo atual, resgatando aquilo que nos conecta ao invés de focarmos em nossas aparentes diferenças. É muito interessante notarmos, por exemplo, que da mesma forma que temos o Deus Eros na mitologia clássica grega, encontramos também a Divindade Kāma na tradição Hindu, ambos com seus arcos e flechas, ambos despertando fortes paixões, mitos que apesar de não serem idênticos, compartilham de semelhanças inegáveis. Compartilhamos no ocidente de uma mesma ancestralidade com a Āryāvarta, o nome antigo da civilização védica do vale do rio Hindus, como demonstrado pela hipótese da língua proto-indo-europeia. Ou seja, linguisticamente o russo, o sânscrito e o português são línguas irmãs, e nossas culturas certamente possuem algo que as une ainda que tão distantes.

Constantin Regamey, filósofo, orientalista e compositor, destacou o quão indispensável é a comparação de tradições filosóficas completamente independentes para um entendimento mais profundo da empreitada filosófica propriamente dita:

“A Índia, na opinião do Professor Regamey, é o único país no qual uma filosofia completa e sistemática cresceu fora da tradição Ocidental.  A filosofia islâmica não pode reivindicar a mesma independência ao compartilhar, da mesma forma que o Judaísmo, o Cristianismo e a metafísica e ciência gregas, do pensamento ocidental. A filosofia chinesa tem fontes autóctones, mas, de acordo com Professor Regamey, não desenvolveu a elaborada epistemologia e ontologia do pensamento europeu e indiano. […] A reflexão sistemática filosófica foi fomentada na Índia em uma magnitude inédita em qualquer outra localidade asiática. (CHARI, 1956, p.1).”

Trabalhar de forma comparativa possui muitos desafios, mas esperamos que esta empreitada possa continuar desenvolvendo frutos em trabalhos futuros. Nossa proposta com este breve trabalho foi demonstrar a importância dos estudos comparativos para a compreensão dos conceitos dos puruṣārthas em seu contexto para ampliarmos nossa reflexão sobre a complexidade da escrita de Lev Tolstói. Em estudos posteriores poderemos aprofundar ainda mais nas relações entre a filosofia indiana e as demais obras do escritor russo a partir deste horizonte de sentido que buscamos abrir nesta presente investigação.

~ Marcus Fonseca

[1] Artigo elaborado sob orientação do Prof. Dr. Jymmy Sudário, em meio às minhas pesquisas de Mestrado em Ciência da Religião no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)


Outras Notas:
[2] Os Upaniṣads se destacam como algumas das mais importantes obras da cultura e religião indiana, “tanto por possuir um papel fundamental no desenvolvimento das ideias religiosas da Índia, como também por serem valiosos como fontes de entendimento da história intelectual, social e religiosa da Índia antiga” (OLIVELLE, 2014, pg. 23, tradução nossa).
[3] The Kāma sutra is the oldest extant Indian textbook of erotic love, and one of the oldest in the world. There is nothing remotely like it even now, and for its time it was astonishingly sophisticated; it was already well-known in India at a time when the Europeans were still swinging in trees, culturally (and sexually) speaking.” (DONIGER, 2016, p. 19).
[4] De onde vem o termo erótico, do grego eróticos.
[5] Ditado latino que nos exorta a refletirmos sobre o fim de nossas vidas.


Referências:
BALASUBRAMANIAN, Radha. The Influence of India on Leo Tolstoy and Tolstoy’s Influence on India: A Study of Reciprocal Receptions, Edwin Mellen Press Ltd., New York, 2013

CHARI, C. T. K. On the Dialectic of Swāmi Vivekananda and Søren Kierkegaard: an “Existential” Approach to Indian Philosophy. Revue Internationale de Philosophie. Vol. 10, No. 37 (3) (1956), pp. 315-331.
DONIGER, Wendy (Editor). Britannica Encyclopedia of World Religions. Encyclopedia Britannica, Michigan University, 2006.
______. Hindu Myths: A Sourcebook Translated from the Sanskrit. London: Penguin Books, 1975.
______. Redeeming the Kāma sutra. Oxford University Press; 1st Edition, 2016.
FLOOD, Gavin.  An introduction to Hinduism. Cambridge University Press, 1996.
______. The meaning and context of the Purusarthas, in Julius Lipner (Editor), The Fruits of Our Desiring, 1996.
FREEMAN, Mark. Death, Narrative Integrity, and the Radical Challenge of Self-Understanding: A Reading of Tolstoy’s ‘Death of Ivan Ilyich’. Ageing & Society, nº 17. Cambridge University Press, 1997.
GRIMES, John. A Concise Dictionary of Indian Philosophy Sanskrit; 1996.
HIRIYANNA, M. The Quest After Perfection. Kavyalaya Publishers: Mysore, 1952
LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. A Greek-English Lexicon. Oxford University Press, 1996.
LOUNDO, Dilip. Individuação como Filosofia Prática: A Clínica da “Meia-Idade” de C.G. Jung e a Doutrina Indiana dos Puruṣārthas. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – Dossiê Sabedoria Oriental, Santa Maria, v.10, n.2, p.21-33, 2019
______. Linguagem e Produção de Sentido: As Grandes Sentenças dos Upaniṣads. IV Jornada de Filosofia Oriental. 2017. Acesso em:  31 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BB2wOnf8nIw&t=5724s.
OLIVELLE, Patrick. Upaniṣads. Oxford University Press, 2008.
PODGORSKI, Daniel. Proximity to Death: Authentic Living and Authentic Dying in Leo Tolstoy’s The Death of Ivan Ilyich. The Gemsbok. Your Tuesday Tome, 1997. https://thegemsbok.com/art-reviews-and-articles/book-reviews-tuesday-tome-the-death-of-ivan-ilyich-leo-tolstoy/ Acessado em 13/01/2022
POTTER, Karl. Presuppositions of India’s Philosophies, Motilal Banarsidass, pp. 1-29, 2002.
PRASAD, Rajendra. The theory of puruṣārthas: revaluation and reconstruction. Journal of Indian Philosophy, Vol. 9, No. 1, pp. 49-76, 1981.
TOLSTÓI, Lev; A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Editora 34, 2009
______.; GANDHI, Mahatma. “Correspondência entre L.N. Tolstói e M.K. Gandhi”. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 9, p. 85-113. Tradução de Belkiss J. Rabello. São Paulo: Revistas USP, 2008.
VATSYAYANA, Mallanaga. Wendy Doniger (Translator), Sudhir Kakar (Translator) Oxford University Press; Reissue edition, 2009.
WESTPHAL, Merold. God, Guilt, and Death: An Existential Phenomenology of Religion. Bloomington, Ind.: Indiana University Press. 1984


 

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